I AM READY TO SINGpor Daniela Castro

Publicado por em out 9, 2012 | Notícias, Textos | Sem Comentários
I AM READY TO SING<i>por Daniela Castro</i>

Análise
Tão abstrata é a ideia
do teu ser
Que me vem de te
olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos
teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu
olhar, e dista
Teu corpo do meu
ver tão longemente,
E a ideia do teu ser
fica tão rente
Ao meu pensar
olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és,
Que, só por ter-me
Consciente de ti, nem
a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me
a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e
sonho,
Não te vendo, nem vendo,
nem sabendo
Que te vejo, ou sequer
que sou, risonho
Do interior crepúsculo
tristonho
Em que sinto que sonho o
que me sinto sendo.
Fernando Pessoa, 1911

Que dificuldade decidir se o poema de Fernando Pessoa seria a epígrafe do
texto ou o seu primeiro parágrafo, apropriado e tornado anônimo, em forma de
poema, iniciando um escrito em forma de ensaio. Optei mesmo pela epígrafe,
pois jamais conseguiria apropriar-me de uma primeira pessoa assinada por tão
imenso autor – sou pequena –, mesmo que a abstração máxima do “eu” perante
o ver o “tu” se desdobre com tamanha violência num nada que convide uma
outra autora a fazê-lo. O corte da decisão se deu pelo fato de esta publicação
ser impressa em páginas A4 dobradas ao meio e sem grampos. Imaginei ser
pertinente aqui descolar a primeira parte do resto, como se desloca o refrão de
suas estrofes quando de repente uma canção cola na mente, destituída de autoria
e de lugar. Um zumbido, longe, desautorizado e retido na voz de quem murmura
ou canta em silêncio, que canta como que para ninguém.
A exposição “Intervalo”, de Marcelo Amorim, retrata uma constelação de
ninguéns, que inclui o artista. Em seu método de colecionar imagens antigas,
tanto pessoais quanto anônimas, adquiridas em sebos, para depois transportá-
las para outros suportes, mantém uma oscilação curta entre pessoalizar o
anônimo e anonimizar o pessoal. Nesse caso, não se trata de avaliar a natureza
do suporte para o qual são transportadas as imagens – da fotografia à pintura, ao
lambe, ao vídeo e ao desenho –, mas como essa passagem de imagens existentes
no mundo para sua recolocação de volta para o mundo, e o intervalo entre elas,
politiza o coletivo.
A fotografia desautorizada, tão anônima em sua autoria quanto a quem ela
grava, “traduzida” e trazida para outros suportes e lugares, nega seu estado
original e inaugura uma outra dimensão estética às suas narrativas. Em nenhum
momento a estética figura como um julgamento de valor dualista, mas sim
como uma recuperação desinstitucionalizada do aisthitikos, a raiz etimológica
da palavra, que se refere ao ato de perceber – e saber? – a partir da experiência
sensorial subjetiva. E aqui vem outro corte. Essa experiência subjetiva é
descolada da esfera da identidade. O princípio identitário pressupõe uma lógica
“vetorializada”, na medida em que eu me defino a partir do que me difere do
ou me assemelha ao outro. O sujeito, nesse caso, é predicado pelo que lhe é
externo. O fôlego do exercício identitário é sempre maior do que o que indivíduo
consegue suportar, e assim é necessário inflar o ego para ali caber a identidade.
Egos com estrias. O subjetivo, aqui, não é o individuado, mas o largo, liso, o da
humildade de apequenar-se e se dissolver no mundo: “E se eu digo ‘eu’ é porque
não ouso dizer ‘tu’, ou ‘nós’, ou ‘uma pessoa’; sou obrigada à humildade de me
personalizar me apequenando, mas sou o és-tu”.1
É do intervalo incomensurável desse hífen que se trata “Intervalo”. As imagens
apropriadas, dotadas de uma carga familiar comum a todos, não se tornam
componentes de um arquivo de experiências individuais do artista, mas sim
um índex da necessidade humana da fabricação de símbolos para tornar o caos
da vida um pouco mais manejável. As imagens de família, do grupo escolar, do esporte atlético masculino, uma vez perdidas em seu próprio circuito e destituídas de sua condição original, revelam, e ao mesmo tempo dissolvem, os
mecanismos de institucionalização da vida para fazer sentido dela; revelam e dissolvem a institucionalização do “eu”, que, caminhando pelo espaço expositivo, sentindo que sonha o que se sente sendo, torna-se “tu”, “nós” e “outra pessoa”.

Daniela Castro é escritora e curadora. Atualmente, prepara seu novo livro, a ser publicado pela par(ent)esis em 2013. Seu mais recente projeto curatorial, em parceria com Jochen Volz, é “The Spiral and the Square: exercises in translatability”, inaugurado em Estocolmo, Suécia, em 2011, e atualmente em cartaz em Kristiansand, Noruega, em sua terceira itinerância.
1 Clarice Lispector, Água Viva (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010), p. 14


*I AM READY TO SING*
by Daniela Castro

Análise

Tão abstrata é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

Fernando Pessoa, 1911

How hard was it to decide if the poem by Fernando Pessoa would be the epigraph of this text or simply its first paragraph, appropriated and made anonymous; a first paragraph in a poem form, initiating this writing which is in the format of an essay; in Portuguese, introducing its translated version in English. I have chosen the epigraph, though, as I would have never been able to appropriate the voice of such an enormous author – I am small –, even if the most severe erasure of the “I” before the “you” given in the poem invites another author to do so.

The decision’s breaking point was the fact that this publication is printed in four loose and folded together A4 sheets. I take it to be pertinent the fact that one could detach the first part from the others in the same fashion that one may detach the chorus of a song when it suddenly sticks to one’s mind. This appropriation becomes a distant, unauthorized buzz – with no authorship or a place – hummed in the voice of who sings in silence, as if singing for no one.

The exhibition Intervalo [Interval] by Marcelo Amorim shows a constellation of no ones that includes the artist himself. In his method of collecting old images – personal and anonymous, often acquired in second hand bookshops – to later transport them to other kinds of media, shows an oscillation between personifying the anonymous and anonymizing the personal. In this case, it’s not about evaluating the nature of the media to which the images are transported – from photography to painting, wet&paste, video and drawing – but as to how this movement of images that are existent in the world to their relocation back into the world, and the gap between them, politicize the collective.

The unauthorized photographs, so anonymous in their authorship as in who they capture, when “translated” to other genres and brought to other places deny their origin and inaugurate a new aesthetic dimension to their narratives. Not in one moment do aesthetics appear here as a judgment of dualistic values, but as a non-institutionalized recovering of aisthitikos, its ethimological root, which refers to the act of perceiving– and knowing? – by feeling through a subjective sensorial experience.

And here comes another breaking point. This subjective sensorial experience is detached from the realm of the identity. The principle of identity is based on the premise of a vectorial logic, since the “I” is defined by what differs or is similar to itself. The subject, in this case, is predicated by what is external to it. The exercising of one’s identity always demand a breath that is larger than one is able to bear, in which case the ego is inflated in order to make room for the identity to fit in it. Egos with stretch marks. The idea of the “subjective” erases the “individualist” and, belittled, dissolves itself smoothly into the world: “And if I say ‘I’ its’ because I dare not say ‘you’ or ‘we’ or ‘a person.’ I’m forced into the humility of personalizing myself belittling myself but I am the are-you.”2

It is the immeasurable interval of this hyphen that Intervalo is about. When imbued with such a collective familiarity, the appropriated images do not become components of the artist’s individual archive of experiences, but rather an index of the human necessity of construing symbols in an effort to make the chaos of life a little more manageable. Images of childhood, school groups, athletic sports are lost from their own circuit and are bereft of their original condition only to reveal and dissolve the mechanisms of institutionalization of life in an effort to make sense out of life; they reveal and dissolve the institutionalization of the “I”, which, when walking through the exhibition space, becomes the “you”, the “we” and the “a person.”

2 LISPECTOR, Clarice, Água viva (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010), p. 14. Author’s free translation