MAQUINAL por Priscila Arantes
Maquinal:
gesto ou um comportamento instintivo realizado por um hábito inconsciente ou sem reflexão aparente.
Marcelo Amorim vem construindo há anos uma trajetória singular, revelando, por meio da apropriação de imagens encontradas em livros, internet, arquivo ou fotografias antigas, sentidos ocultos da cultura de nosso tempo. Em Maquinal, Amorim trata de uma questão fundamental: o fato de que vivemos mergulhados em um mundo de imagens que têm influência decisiva na maneira como vemos e nos comportamos frente à realidade.
Consumimos imagens o tempo todo: nos jornais, na televisão, na internet, nos celulares. O que vemos em um mundo dominado pelas imagens – já nos advertira Flusser – não é o mundo, mas determinados conceitos relativos ao mundo impregnados na estrutura midiática.
Marcelo Amorim é um colecionador de imagens do mundo. Guarda deles fragmentos aparentemente inocentes que revelam, de maneira discreta – mas nem por isso menos contundentes –, o poder das imagens na programação de nossas vidas.
Somos cada vez mais operadores de máquinas, apertadores de botões, usuários de interfaces. Lidamos com situações programadas sem nos darmos conta. Pensamos que podemos escolher e, como decorrência, nos imaginamos inventivos e livres. Mas nossa liberdade e capacidade de invenção estão restritas a um software, a um conjunto de possibilidades dadas a priori que não dominamos inteiramente.
Maquinal divide-se em três eixos que dialogam entre si. No primeiro, encontramos uma série de pinturas a óleo baseadas em imagens das capas coloridas de uma revista americana chamada Popular Mechanics. Destinada ao público masculino e com uma estética típica dos anos pós-guerra, a publicação revela segredos de mecânica, incitando no homem uma aptidão a consertar máquinas e equipamentos de qualquer tipo. Por meio de colagens, o artista sobrepõe imagens e personagens. Amplia as capas em grandes dimensões deslocando-as de seu contexto original. Confunde e distorce propositalmente escalas, potencializa as gamas de cor e confere à sua pintura um carácter quase surreal. A máquina oscila muitas vezes para a condição de brinquedo; o carro torna-se um carrinho de montar, o soldado, um boneco para se manipular.
O estereótipo do homem bem-sucedido ecoa em outro arquivo desta grande biblioteca montada por Amorim: seis filmes caseiros e realizados em Super 8, provavelmente de uma época semelhante às imagens que permeiam as pinturas. São vídeos que mostram o carro novo, a casa, o peixe grande que o homem pescou, a lebre que ele caçou, o salto perfeito que realizou e, finalmente, o bebê; o filho que parece coroar todo esse roteiro de realizações desse imaginário de homem bem-sucedido.
No último vetor encontramos fotografias coletadas na internet de homens no exército. Muitas vezes nus e colocados em fila, como em uma esteira de montagem, deixam evidente a idéia que perpassa toda a exposição: a relação intrínseca entre o homem e a máquina.
Mas talvez seja exatamente nesta parte da exposição que o gesto delicado de Amorim fica mais evidente. O tom preto e branco de um ambiente aparentemente desprovido de subjetividade nos lança em um terreno dúbio, em que a informação de padronização de estereótipos se transforma, ao mesmo tempo, em uma mensagem de afeto. Muito diferente da imagem heróica do soldado, os homens ali estão quase sempre vulneráveis, frágeis e em momentos de descontração. E talvez seja exatamente aqui que encontramos uma pequena brecha de alívio em que a vida ainda parece fazer sentido.
São sobre essas imagens e gestos que Maquinal nos faz refletir. Se vivemos o totalitarismo dos aparelhos e das imagens publicitárias é possível vislumbrar, por meio de trabalhos como o de Marcelo Amorim, uma pequena brecha de sentido e reflexão sobre as possibilidades de criação e liberdade em uma sociedade cada vez mais programada e dominada pelas imagens técnicas.
Priscila Arantes, curadora
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Maquinal (‘Mechanical’):
A gesture or an instinctive behavior performed by an unconscious habit or one without apparent reflection.
Marcelo Amorim has been building a singular path for years, revealing, through the appropriation of images found in books, on the internet, on file or in old photographs, hidden meanings of the culture of our time. In Maquinal (‘Mechanical’), Amorim deals with a key issue: the fact that we live immersed in a world of images which have a decisive influence on the way we think and behave towards reality.
We consume images all the time: in newspapers, on television, on the internet, on mobile phones. What we see in a world dominated by images – as Flusser had already warned us – is not the world itself, but certain concepts concerning the world, impregnated in the media structure.
Marcelo Amorim is a world image collector. He retains their seemingly innocent fragments which reveal, discreetly – but no less strikingly – the power of images in programming our lives.
We are increasingly becoming operators of machines, pushers of buttons, users of interfaces. We deal with programmed situations without realizing it. We think we can choose and, as a result, we imagine ourselves as inventive and free. But our freedom and ability to invent are restricted to a software, to a set of possibilities given a priori, and over which we do not have full control.
Mechanical is divided into three vectors which interact with each other. In the first, we find a series of oil paintings based on the images of colorful covers of an American magazine called Popular Mechanics. Aimed at the male audience and with the typical aesthetics of the postwar years, the publication reveals mechanical secrets, inciting in men the ability to repair machines and equipment of all kinds. Through collages, the artist superimposes images and characters. He amplifies the dimensions of the covers, displacing them from their original context. He deliberately confuses and distorts scales, intensifies color ranges, and gives his paintings an almost surreal character. The machine often oscillates to the condition of a toy; the car becomes a miniature model, the soldier becomes an action figure to play with.
The stereotype of the successful man echoes in another file of this large library assembled by Amorim: six home videos performed in Super 8, probably from a similar time of the images that permeate the paintings. The films show the new car, the house, the big fish the man has caught, the hare he has hunted, the perfect jump he did, and finally, the baby; the son that seems to crown this whole script of achievements by this imaginary successful man.
In the last vector we find photographs collected from the Internet of men in the army. Often naked and placed in a row, as if in an assembly line, bringing to light the idea that permeates the entire exhibition: the intrinsic relationship between man and machine.
But perhaps it is precisely in this part of the exhibition where Amorim’s delicate gesture is more evident. The black and white tone of an environment apparently devoid of subjectivity launches us into a dubious terrain, wherein the information of stereotypes standardization becomes, simultaneously, a message of affection. Very different from the heroic soldier image, here men are most often vulnerable, fragile and in moments of distraction. And perhaps it is precisely here that we find a small breath of relief where life still seems to make sense.
These are the images and gestures that Maquinal (‘Mechanical’) makes us reflect upon. If we live in the totalitarianism of devices and advertising images, it is still possible to glimpse, through works such as this by Marcelo Amorim, a small gap of meaning and reflection on the possibilities of creation and freedom, in an increasingly programmed society dominated by technical images.
Priscila Arantes, curator