IMAGENS, APROPRIAÇÕES e DEVOLUÇÕES por Carlos Eduardo Riccioppo
Não importa se elas foram recolhidas pelo artista ou se ele as produziu em algum momento, as imagens presentes no trabalho de Marcelo Amorim são sempre de segunda mão. As pinturas as reeditam, reorganizam, enxugam suas informações, ampliam-nas, e, sobretudo, traduzem o vocabulário visual que encontram nelas para o espectro de suas especificidades técnicas.
Tudo leva a crer que tais imagens, num processo como esse, fossem drenadas de qualquer caráter individual, resultando, então, em objetos apropriados e equivalentes, tanto faz sua procedência ou seu conteúdo; e é verdade que, em alguma medida, os trabalhos do artista se deixam envolver por uma atmosfera algo pop, ou, antes, deixam presumir a lida com um vocabulário de conhecimento comum, marcado, além disso, por um certo desgaste – trata-se de imagens, de jeitos de desenhar, de gostos editoriais de uma outra época, de décadas atrás, imagens, portanto, que não poderiam ser enfrentadas sem que a elas se tivesse agregado toda uma carga de adjetivos. “Vintage”, aliás, poderia ser o termo que mais imediatamente caracterizasse sua natureza: não imagens que simplesmente desapareceram da circulação, nem aquelas que seguem repostas no dia a dia, mas, sim, aquelas que surgem metabolizadas por algum “fetiche”, por assim dizer.
Parece oportuno mencionar que boa parte das imagens que resultam nas pinturas do artista venham de ilustrações da década de 1950, das páginas de um tomo de uma enciclopédia especialmente destinado a ensinar crianças regras de jogos, brincadeiras e a fazer seus próprios brinquedos. Embora algumas partes do volume tenham contado com intervenções de ilustradores do país, tais ilustrações são em massa de origem norte-americana, o que talvez explique algo dos caracteres fisionômicos das crianças que irão aparecer nas pinturas…
Mas, talvez, não seja necessário recorrer a muitas explicações no que se refere às especificidades dessas imagens; elas são assim porque provavelmente foram capazes de dar o tom à produção editorial de toda uma época, mesmo que não se possa dizer com precisão o que são essas imagens, de onde vêm, quando formaram seu léxico de efeitos e soluções. O fato é que carregam indicadores suficientes para que seu interesse ainda seja ativado quando são encontradas: o “vintage” pode bem ser o preto e branco, e aquilo que é afeito aos altos contrastes; pode aparecer quando os desenhos das figuras são deixados propositadamente incompletos em algumas partes, ou “sangrando”; surgir quando os meninos têm cabelo penteado para o lado e as meninas, franja e laço, ou rabo-de-cavalo. A propósito de meninos e meninas, também são “vintage” as roupinhas pré ou pós-comportadas, que caem tão bem a qualquer desenho – camisas amarrotadinhas, semiabertas mas para dentro da calça, e vestidinhos (de repente de cetim) com manguinhas estufadas ou laçarotes.
É provável que esse imaginário tenha fincado raízes para muito além do momento em que ele foi sendo fundado. Não fosse isso, essas imagens não casariam tão bem, não se comportariam tão sem estranhamento nas pinturas do artista, que são sempre veladas, feitas de tons muito claros, às vezes marcadas por um amarelamento… Sem dúvida, essas características derivam do fato de que, em sua transliteração, o artista tome suas imagens tal como elas se conservaram – em páginas que se vão encardindo, em desenhos impressos que descolorem, ou, no caso específico de fotografias, em ampliações que já tendem à monocromia.
No entanto, o que chama a atenção nas pinturas do artista é o quanto a austeridade e a contenção se reafirmam mutuamente nos procedimentos dos trabalhos e nas próprias imagens que eles carregam. Para além de concederem a essas imagens o direito de reaparecerem com as molduras dos índices temporais que as encerram, aquele mesmo amarelamento, acinzentamento das superfícies das pinturas – e, além deles, a economia de gestos na transliteração das figuras presentes nessas imagens (aquarelas tornam-se aguadas; desenhos a nanquim ou gravados tornam-se linhas em acrílica) –, tudo isso parece devolver algo ao conteúdo dessas imagens, que tratam mesmo de uma educação moral, neste caso, destinada às crianças, marcadamente apelando a uma contenção do corpo por meio da gabaritagem das regras dos jogos sugeridos. Uma contenção inesperadamente análoga àquela que produz, nas pinturas, uma sempre apreciável modéstia (em sentido estrito, de moderação). Talvez seja esta coincidência o que faz com que, para além da inadvertida presença da memória e da infância nas pinturas do artista, essas obras sigam devolvendo algum drama, alguma desconfiança com relação ao caráter inofensivo de suas imagens.
Carlos Eduardo Riccioppo Julho de 2014