EDUCAÇÃO PARA O AMOR,EDUCAÇÃO PARA O AMOR? Por Carolina Soares
De imediato, o estranhamento. Afinal, o que levaria alguém a recorrer à aplicação de um método para assegurar o ensino sobre algo que pressupõe uma atração, natural, afetiva ou física entre pessoas? Já no século 21, a proposta soa no mínimo retrógrada, quando não, datada. Se a pergunta supõe atiçar um debate de caráter conservador e um tanto autoritário de tempos passados, é precisamente na recolocação de um enunciado já vazio de significados e repleto de ambiguidades que repousa o interesse de Marcelo Amorim.
Outro dia, enquanto visitava alguns sebos, o artista deteve-se diante de um título curioso, Educação para o amor – introdução à psicologia da afetividade, de autor desconhecido. Não se tratava, porém, de um livro, mas sim de uma série de slides que acompanhava a publicação original. Uma vez que houve esse desmembramento, a aquisição de Amorim centrou-se nessa multiplicidade de imagens que – divididas em vários volumes – sintetizam uma espécie de representação das mais diversas maneiras de se demonstrar “amor” seja entre mãe e filho ou entre homem e mulher. Mantendo-se desconhecido o conteúdo propriamente do livro, salta aos olhos o aparente instrumentalismo sugerido pelo título e o papel ilustrativo ao qual as imagens parecem estar sujeitas. Ao serem projetados, os slides evidenciam encenações de uma felicidade estereotipada e quase sempre forçosa. Casais enamorados que passeiam pela areia da praia, que se beijam, trocam olhares e sorrisos. Mães que brincam com seus filhos, que os abraçam e os acariciam. Não obstante a notória presença feminina na constituição dos pares, o esquema ao qual essas imagens parecem aludir assemelha-se àquele contestado por Simone de Beauvoir, em 1949, quando escreve O segundo sexo. Ou seja, no seio da família a mulher apresenta-se à criança e ao jovem revestida da mesma dignidade social dos adultos masculinos; mais tarde ele sente no desejo e no amor a resistência, a independência da mulher desejada e amada; casado, ele respeita na mulher a esposa, a mãe, e na experiência concreta da vida conjugal ela se afirma em face dele como uma liberdade. Mas, logo que entra em conflito com a mulher a situação se inverte e, então, esbraveja: “serias totalmente incapaz de ganhar tua vida sem mim”. Mas, se, de início, as cenas idílicas assumiam o papel de dar suporte visual a um texto didática/ pedagógica sobre como educar para o amor, agora a elas é atribuída uma nova consciência. Elas deixam de deflagrar um possível mecanismo esquemático – com apelo sexista ainda de cunho moralista – para retornar a sua condição de meras imagens. Do desprendimento em relação ao texto original, tornam-se resíduos dessecados de um sentido primeiro. E é dessa nova condição assumida por essas imagens que Marcelo Amorim tira proveito para então propor a série homônima Educação para o amor. O artista – que desde 2008 vem realizando desenhos a partir de imagens de slides – revela uma pintura. Exatamente. Escolhe os diapositivos e decide pela tinta a óleo para transpor, sem interditos, a imagem projetada para uma tela. O resultado desse processo de transposição é uma pintura sem textura, sem densidade, pouco contrastada. Em alguns momentos a opacidade alcançada faz com que a tinta à óleo ganhe aspectos de guache. Não há espaço para detalhes. Tudo se dilui; tudo se esvai pelo predomínio de uma transparência que parece carregar consigo a imaterialidade daquela imagem primeira formada apenas de fótons luminosos. Sem o rigor de um pintor que se empenha em preciosismos técnicos, Amorim apresenta uma pintura que não se pretende pintura, mas imagem decantada que abre mão de todo o peso dos estereótipos para confundir-se entre cenas quaisquer de um cotidiano amoroso banal. Se Gerhard Richter tivesse tido contato com o mesmo material de Educação para o amor, entre as décadas de 1960/70, a aparência geral seria bem semelhante àquela proposta por Amorim. Mas ao transpor para tela imagens fotográficas vulgares de periódicos – mesmo aquelas de cenas amorosas – Richter depositava ali não somente uma atenção
ao procedimento técnico como também a intenção de um gesto crítico que se atinha a um posicionamento político de um alemão diante das atrocidades da Segunda Guerra Mundial.
Não que Marcelo Amorim tivesse em mente as pinturas do artista alemão, afinal seu trabalho surge despido até mesmo de qualquer resquício de um “debate de
caráter conservador e um tanto autoritário de tempos passados”, resguarda apenas algo que lhes confere uma condição de uma ironia falaciosa. Talvez essa dubiedade caia por terra quando a transposição passa a ser feita por meio de um lápis sobre papel. Embora os desenhos se liguem às pinturas por uma mesma desilusão diante das representações, neles o artista parece tentar restituir um certo ânimo em torno da natureza dos meios e das possibilidades que apresentam. Retoma um fazer bem similar àquele dos transfers ou do papel carbono. O procedimento está em posicionar um papel branco sobre uma fotografia qualquer e com a pressão dos riscos feitos a lápis, a imagem é transferida. Ou, se quisermos uma aproximação ao universo fotográfico, torna-se também similar a realização dos fotogramas, em que as fotografias são obtidas pelo posicionamento dos objetos diretamente sobre o papel sensibilizado. Essa impregnação por contato resulta em uma imagem quase gravura formada por traços leves, mas preenchidos de densidade.
A série Educação para o amor se esquiva tanto da suposta verdade de um realismo fotográfico quanto da grande eloquência do fazer pictórico. Em seu procedimento,
tudo surge impregnado de desencanto. A cópia é uma mera cópia. Não se trata mais de revisitar a História da Arte aludindo ao modo como os grandes mestres eram copiados enaltecendo o próprio ensinamento da prática artística. Nem tampouco de rever as propostas educacionais nas quais se espelham Educação para o amor em que a cópia (ou a repetição em excesso) tornava-se um ato mecanicista de assimilação dos enunciados.
Se é possível falar de um teor crítico ele surge pela intensidade de negação de uma crítica. E é precisamente nesse ponto em que reside a força do trabalho.
Para, então, olhar para os casais enamorados daquelas pinturas e torcer por um final feliz!
“O seu amor ame-o e deixe-o
livre para amar, livre para amar, livre para amar.
O seu amor ame-o e deixe-o
ir aonde quiser, ir aonde quiser, ir aonde quiser.
[…]
O seu amor ame-o e deixe-o
ser o que ele é, ser o que ele é, ser o que ele é.”
(Doces Bárbaros, 1976)
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Carolina Soares
* EDUCATION FOR LOVE? *
by Carolina Soares
At first, strangeness. After all, what would lead anyone to use methods to teach something that assumes natural, affective or physical attraction between people? In the 21st century this proposal sounds at least retrograde, if not dated. If the question assumes provoking a conservative and somewhat authoritarian discussion about the past, the interest of Marcelo Amorim lies precisely in restoring a statement lacking meaning and full of ambiguities.
One day, just browsing some second-hand bookstores, the artist found himself looking at a curious work, Education for Love – Introduction to the Psychology of Affection, by an unknown author. However, this was not a book, but rather a series of slides that was part of the original work. Since it had been broken down, Amorim’s bought only the multiple images which – split into many volumes – summarized some kind of representation of the various ways to show “love,” either between a mother and her child or between a man and a woman.
As the actual contents of the book are unknown, one can see only the apparent instrumentalism suggested by the title and the illustrative role which the images seem to be subject to. When projected, the slides show a stereotypical portrayal of happiness that in most cases is fabricated. Couples in love strolling along the beach, kissing, and looking and smiling at each other. Mothers playing, embracing and caressing their children. Despite the obvious presence of women to form the couples, the arrangement of the images seems to imply the one opposed by Simone de Beauvoir in 1949, when she wrote The Second Sex. That is, in the heart of the family the woman is introduced to her child or young son with the same social dignity as male adults; later, he feels in the desire and love a resistance to the independence of the desired and loved woman; married, he respects the woman as his wife, a mother; and in the concrete experience of marital life she asserts herself as free from him. But, as he is brought into conflict with his wife, the situation turns about, and then he shouts: “you could not make a living without me.”
However, if in the beginning the idyllic scenes served to visually support a didactic and pedagogic text on how to educate for love, now women raise awareness. They no longer resort to a possible scheme – with a sexist and yet moralist appeal – in order to regain their statuses as mere images. Detached from the original text, they become dried residues of a first sense. Marcelo Amorim uses the new status achieved by these images to later create a namesake series, Education for Love. The artist – who has been making drawings from slide images since 2008 – reveals a painting. Exactly. He selects the diapositives and uses oil paint in order to transfer, with no taboos, the projected image to a canvas.
The result of this transfer process is a painting with no texture, no density, and little contrast. Sometimes the opaqueness obtained causes the oil paint to look like gouache. There is no room for details. Everything is diluted; everything fades away because of a prevailing transparency that seems to carry with it the immateriality of the original image formed only by luminous photons. Without the strict rules of a painter who resorts to over-refinement, Amorim presents a painting not intended to be painting, but rather a decanted image deprived of heavy stereotypes that mingles with scenes of the everyday loving life.
If Gerhard Richter had had access to the Education for Love material in the 1960’s and 70’s, his work would generally look like the one proposed by Amorim. However, by transferring to the canvas vulgar photographic images of journals – including love scenes – Richter not only paid attention to the technical procedure, but also intended to send a critical signal based on the political bias of a German individual facing all the horrors of World War II.
It’s not that Marcelo Amorim had the paintings of the German artist in mind; after all, his work is deprived of any trace of a “conservative and somewhat authoritarian discussion about the past,” but it has something that renders it a fallacious irony. Maybe this doubt will cease to exist when the transfer is made by pencil on paper. Although the drawings are connected to the paintings by the same disillusion with representations, it seems that the artist attempts to restore the life around the nature of the existing means and possibilities. He restores a way that is similar to the transfers or carbon paper.
The procedure consists in placing a white sheet on any given photograph, and the image is transferred by pressing the lines with a pencil. Or, if we want to compare it with photography, it is similar to the making of photograms, in which the photographs are obtained by placing objects directly onto the surface of light-sensitive paper. Such an impregnation by contact results in an almost-engraving image that is formed by fine but filled-with-density lines.
The Education for Love series is detached both from the supposed truth of photographic realism and the great eloquence of pictorial art. Its procedure is filled with disenchantment. The copy is merely a copy. This is no longer about revisiting the History of Art by mentioning how the Old Masters would be copied to exalt the teaching of art, or about reviewing education proposals reflected by Education for Love in which copying (or excess repetition) would become a mechanical act of assimilating statements.Critical content, if any, arises from intense denial of criticism. The power of the work lies precisely in this issue.
And then look at the couples in love in those paintings and hope for a happy ending!
Your love, love it and let it
free to love, free to love, free to love.
Your love, love it and let it
go anywhere, anywhere, anywhere.[…]
Your love, love it and let it
be what it is, be what is, be what it is.
Doces Bárbaros, 1976 [free translation]